Noite Escura
Afastou-se da janela, libertando-se daquela inércia que a mantivera prisioneira da expectativa e deixando todo o seu tédio condensado no vidro. Imediatamente engolida pela escuridão da sala, estabeleceu um mapa mental do seu mobiliário e contornou, com a presteza de uma gata, todos os obstáculos até à sala de banho, contígua ao quarto. No percurso, foi experimentando a textura dos vários tecidos e a temperatura dos diversos materiais, identificando curvas e vértices pelo toque suave das suas mãos que, como uma bússola, lhe indicavam o caminho. Aproximou-se da bancada do lavatório e tacteou as gavetas, abriu a terceira e retirou do seu interior um isqueiro e uma vela que logo perfumou a atmosfera. Acendeu-a. Era uma vela da cor da madeira doce da caneleira, curta mas de abusado diâmetro, e cujo pavio iluminou debilmente a espaçosa divisão que fora especialmente projectada para momentos de puro prazer e relaxamento. Afastou, então, a cortina de banho, tapou o ralo e rodou a torneira da água quente que, licenciosamente, começou a encher a banheira.
Acendeu mais algumas velas aromáticas e o cheiro a canela misturou-se, rapidamente, com o travo cítrico a laranja que rompeu a nuvem de vapor. Espalhou as velas pela bancada de mármore e pelo rebordo largo da banheira, que acolhia vários frascos de sais de banho e uma tábua comprida de ripas, sobre a qual repousava uma colecção de sabonetes. No parapeito de madeira, que emoldurava a enorme janela por cima da banheira, encontrava-se uma jarra com canas de bambu de folhagem alta e viçosa e uma taça de coloridas pérolas de gelatina translúcida, as quais encerravam óleos de banho.
Afastou um pouco mais a cortina e temperou a água que se começava a evaporar logo à saída da torneira. Da gaveta, ainda entreaberta, retirou um pacote que colocou em cima da bancada. Elevou uma vela mais delgada e dirigiu-se à cozinha. Lavou vários morangos maduros e, com a ajuda de uma faca afiada, que se encontrava magneticamente suspensa na barra metálica sobre o lava-loiça, retirou-lhes o caule, colocando-os, em seguida, num prato fundo e regando-os, depois, com sumo de limão.
Voltou à sala de banho e, atravessando, a atmosfera saturada, fechou a torneira. A banheira possuía já água suficiente para nela afundar todo o seu corpo que parecia, cada vez mais, implorar por esse deleite. Retirou duas bolas de óleo e, ansiando pelo seu efeito relaxante e hidratante, soltou-as na água quente, revolvendo-a. Em seguida, abriu o saco que deixara em cima da bancada e vazou, cuidadosamente, o seu conteúdo para dentro da banheira, espalhando as pétalas de rosa vermelhas por toda a superfície da água.
Naquela sauna acolhedora, quase mágica, despiu-se lentamente, vestiu um roupão turco e calçou os chinelos rasos do mesmo tecido. Depositou a sua roupa para lavar no cesto que se encontrava ao canto, junto a uma chaise longue, e atravessou o quarto para ir arrumar os sapatos na respectiva caixa. Foi, então, que ouviu passos nas escadas; depois, ainda a uma certa distância, um tilintar abafado de chaves.
Reentrou na sala de banho e despiu o roupão, pendurando-o atrás da porta, que fechou. Descalçou os chinelos e colocou o prato de morangos maduros na orla da banheira, imergindo naquele caldo fragrante e acetinado.
Só então ouviu a fechadura da entrada de casa a ceder a uma chave que, no seu interior, rodava vagarosamente.