domingo, abril 23, 2006

Noite Escura

A cidade apagara-se, havia meia hora, exausta de si própria. Fora um desmaio súbito e caíra, segundos depois, naquela paz enganadora em que, no silêncio inusitado, tudo pode acontecer. A Lua Nova, que já cruzava, invisível, o céu brumoso de Janeiro, era igualmente incapaz de distinguir as formas voluptuosas das sete colinas e a vida desenhava-se apenas no sistema circulatório do tráfego que fazia bater o coração da metrópole.

Afastou-se da janela, libertando-se daquela inércia que a mantivera prisioneira da expectativa e deixando todo o seu tédio condensado no vidro. Imediatamente engolida pela escuridão da sala, estabeleceu um mapa mental do seu mobiliário e contornou, com a presteza de uma gata, todos os obstáculos até à sala de banho, contígua ao quarto. No percurso, foi experimentando a textura dos vários tecidos e a temperatura dos diversos materiais, identificando curvas e vértices pelo toque suave das suas mãos que, como uma bússola, lhe indicavam o caminho. Aproximou-se da bancada do lavatório e tacteou as gavetas, abriu a terceira e retirou do seu interior um isqueiro e uma vela que logo perfumou a atmosfera. Acendeu-a. Era uma vela da cor da madeira doce da caneleira, curta mas de abusado diâmetro, e cujo pavio iluminou debilmente a espaçosa divisão que fora especialmente projectada para momentos de puro prazer e relaxamento. Afastou, então, a cortina de banho, tapou o ralo e rodou a torneira da água quente que, licenciosamente, começou a encher a banheira.

Acendeu mais algumas velas aromáticas e o cheiro a canela misturou-se, rapidamente, com o travo cítrico a laranja que rompeu a nuvem de vapor. Espalhou as velas pela bancada de mármore e pelo rebordo largo da banheira, que acolhia vários frascos de sais de banho e uma tábua comprida de ripas, sobre a qual repousava uma colecção de sabonetes. No parapeito de madeira, que emoldurava a enorme janela por cima da banheira, encontrava-se uma jarra com canas de bambu de folhagem alta e viçosa e uma taça de coloridas pérolas de gelatina translúcida, as quais encerravam óleos de banho.

Afastou um pouco mais a cortina e temperou a água que se começava a evaporar logo à saída da torneira. Da gaveta, ainda entreaberta, retirou um pacote que colocou em cima da bancada. Elevou uma vela mais delgada e dirigiu-se à cozinha. Lavou vários morangos maduros e, com a ajuda de uma faca afiada, que se encontrava magneticamente suspensa na barra metálica sobre o lava-loiça, retirou-lhes o caule, colocando-os, em seguida, num prato fundo e regando-os, depois, com sumo de limão.

Voltou à sala de banho e, atravessando, a atmosfera saturada, fechou a torneira. A banheira possuía já água suficiente para nela afundar todo o seu corpo que parecia, cada vez mais, implorar por esse deleite. Retirou duas bolas de óleo e, ansiando pelo seu efeito relaxante e hidratante, soltou-as na água quente, revolvendo-a. Em seguida, abriu o saco que deixara em cima da bancada e vazou, cuidadosamente, o seu conteúdo para dentro da banheira, espalhando as pétalas de rosa vermelhas por toda a superfície da água.

Naquela sauna acolhedora, quase mágica, despiu-se lentamente, vestiu um roupão turco e calçou os chinelos rasos do mesmo tecido. Depositou a sua roupa para lavar no cesto que se encontrava ao canto, junto a uma chaise longue, e atravessou o quarto para ir arrumar os sapatos na respectiva caixa. Foi, então, que ouviu passos nas escadas; depois, ainda a uma certa distância, um tilintar abafado de chaves.

Reentrou na sala de banho e despiu o roupão, pendurando-o atrás da porta, que fechou. Descalçou os chinelos e colocou o prato de morangos maduros na orla da banheira, imergindo naquele caldo fragrante e acetinado.

Só então ouviu a fechadura da entrada de casa a ceder a uma chave que, no seu interior, rodava vagarosamente.

terça-feira, abril 18, 2006

O Outono do Patriarca


O ouriço espinhoso secou, no alto do velho castanheiro manso cuja copa se escondia para lá da moldura da janela, e a castanha, brilhante e madura, rompeu a cápsula que a envolvia. Embateu num galho próximo, mudou ligeiramente de trajectória, arrepiou algumas folhas longas e dentadas, já amarelecidas, e, desamparada, embateu, segundos depois, junto ao caule lenhoso, na manta morta que lhe amorteceu o impacto.

Os raios de luz, enfraquecidos por uma inclinação que se acentuara nos últimos dias, dispersavam a sua já débil energia, incapazes de conservar morno o entardecer. Um chuvisco juntou-se ao quadro e as suas gotas, miúdas e espaçadas, depressa despontaram o odor inebriante a terra húmida que se misturou com o perfume adocicado da marmelada ao lume.

Distinguiu um arrulhado, ao longe, sobre o som balsâmico dos pingos a desfazerem-se no tapete alaranjado de folhas caducas. Seria uma rola atrasada para a sua grande cruzada migratória ou talvez uma daquelas que já se escusavam a partir para terras pouco mais quentes. Quando a passagem da colher de pau pelo doce viscoso deixou um sulco perfeito que denunciou o fundo da panela, desligou o aquecimento e desviou o olhar na direcção da janela, demorando-o nos galhos retorcidos e desarmados, numa ausência vaga que, antes de ser processada, foi interrompida pelo ranger de molas que chegava do primeiro andar. Aproximou-se das escadas e falou para cima:

- Deixei-te um colete de malha em cima da cadeira do quarto. Veste-o. Enquanto dormias, arrefeceu bastante.

Voltou para a cozinha e procurou o relógio de parede. Deviam estar a chegar. Reuniu, rapidamente, as cascas e as sementes dos marmelos nas mãos e despejou-as no caixote de lixo. Abriu a porta de um armário, retirou duas tigelas fundas, para as quais verteu a marmelada clara, ainda quente e macia, e tapou-as com rodelas de papel vegetal. Colocou as taças na bancada, junto ao parapeito da janela e recordou-se, nostálgica, das tardes inesquecíveis, para sempre prisioneiras de outro século, quando se juntava à avó Teresinha e, juntas, entre ensinamentos e afectos, naquela misteriosa cumplicidade genealógica, preparavam as mais aromáticas iguarias com que, orgulhosas, arrastavam lentamente toda a família para a cozinha.

O Pintas já havia dado o primeiro sinal, ladrando e ganindo alternadamente, mas foi o som metálico de uma aliança, a colidir suavemente com o vidro martelado da porta, que lhe sonegou, mais uma vez, o passado. Limpou as mãos ao avental, retirando-o com celeridade, deu um jeito no cabelo, eliminou qualquer vestígio de saudade de seus vivos olhos verdes e foi ao encontro dos vultos difusos que, do outro lado, aguardavam.

As visitas de Sábado eram sempre o ponto alto da semana. Apareciam ao lusco-fusco e a sua chama, resplandecente, iluminava, a partir daí, a noite que se debruçava sobre o Douro. E desde que o marido ganhara o solitário e errante hábito de partir, repentinamente, para lugares distantes e nebulosos, faziam-lhe bem outras companhias.

- E o pai, mãe? Como tem passado?

- Vai andando, filha, vai andando… por onde é que não sei bem.

Os olhos vidraram-se-lhe nos degraus da escada e recordou-se, cativa de uma tristeza infinita, da última vergonha que passara, numa pastelaria da Régua, quando o marido a forçara a deslocar-se à casa de banho para lhe apresentar um senhor muito simpático que lá estava. Sorriu-me muito e disse-me várias vezes olá, tens de o vir conhecer, insistira, minutos antes de lhe indicar um simples e frio espelho de parede.

Na escada, surgiu José, arrastando-se pesadamente.

- E o colete de malha que te deixei na cadeira? Já não está tempo de andar só com uma camisa...

- Mas eu vesti-o – e, desabotoando dois botões, puxou para fora uma ponta de malha e rematou, pomposo -, tal como tu me disseste.